Tecendo tempos e narrativas: as escolas de educação infantil na pandemia – Verônica Ezequiel

(Texto advindo da live realizada em parceria com Silvia Eugenia Molina e Rosane Romanini, cujo título foi: De que maneira pais, professores e cuidadores podem apresentar a pandemia às crianças?)

Há tempos atrás” é a expressão que minha filha, com a liberdade com que as crianças pequenas navegam pela linguagem, elegeu para definir o tempo pré-pandemia: “há tempos atrás a gente ia ao parque”, “há tempos atrás a gente comia picolés na rua”. Liberdade que nos abre espaço para pensar no tempo e seus efeitos em nós.

Lançando mão desta ideia, dos diferentes tempos e registros que habitamos neste momento, pensei que tempos atrás criamos nas escolas de educação infantil onde atuo um espaço chamado Rodas de Conversa, com os educadores e educadoras. Iniciamos em 2019 e as mantivemos até março deste ano, quando as escolas fecharam por conta da pandemia. As rodas tinham por objetivo escutar as vivências das equipes com as crianças para, a partir destas experiências, falarmos sobre temas relativos ao desenvolvimento infantil.

Tendo como ponto de partida a escrita de narrativas curtas acerca da pergunta “que cena te tocou ou emocionou junto às crianças na escola?”, as rodas de conversa configuraram-se como potentes espaços de trocas e interlocuções. Entretanto, aos poucos fomos percebendo que o efeito mais interessante não se dava ali, naquele instante em que elas aconteciam, mas num tempo outro, no tempo do reencontro dos professores com as crianças em sala de aula. A possibilidade de recobrir com palavras as vivências do cotidiano escolar, as angústias, as dúvidas, produzia, acima das nossas expectativas, importantes deslocamentos na relação entre os educadores, os bebês e as crianças.

Deste modo, ao pensarmos em “Como Apresentar a Pandemia às Crianças”, podemos nos questionar: que narrativas nós, adultos, aqueles que ofertam olhar para que as crianças cresçam e se constituam como sujeitos, estamos conseguindo armar acerca deste momento?

Essa resposta só podemos supor a partir da escuta. Uma escuta que, para além dos consultórios, pode se dar por meio dos laços estabelecidos desde antes da pandemia entre a escola e as famílias. Esta aposta sustenta-se no entendimento da escola de educação infantil como um espaço que pode compor a rede simbólica que precisa se armar para a constituição psíquica dos bebês e das crianças.

Neste sentido, de que forma nós, que trabalhamos com a primeira infância, podemos ajudar os adultos que se ocupam das crianças a criar narrativas a partir destas vivências traumáticas que estamos atravessando? Quem escuta os pais? Quem escuta os professores? Que narrativas têm se armado acerca do tempo, por exemplo?

Quanto tempo ainda?” é uma pergunta que as crianças têm tido a coragem de fazer. E nós, adultos, não temos essa resposta – e, ainda assim, é fundamental que ofertemos às crianças a garantia de que esse tempo “do depois” chegará. Esta reflexão me remete a uma proposta de uma das escolas da rede onde trabalho. Sugeriu-se às famílias que as crianças fotografassem livremente o espaço da sua casa ou a paisagem vista da janela. Estas fotos poderiam ser enviadas à escola para serem expostas em um mural para que, na ocasião do retorno das crianças, pudessem ser vistas e compartilhadas entre os colegas.

Esta proposta nos permite pensar, entre outras coisas, nesse fio que pode ser tecido entre espaço da escola e casa das famílias, e que acaba por configurar-se também como o fio que liga três tempos: o antes, o agora e o pós-pandemia. Pareceu-me que havia ali a oferta de uma garantia, para as crianças e as famílias, de que haverá um depois, de que existe o “tempos atrás”, mas também existem tempos por vir. Isso, evidentemente, sem romantizar esse depois, sabendo de todas as questões que teremos de pensar antes do retorno de forma segura. Ainda assim, acredito que a presença da escola de forma afetuosa e cuidadosa na vida destas famílias pode transmitir a confiança de que há “tempos adiante”. Evidentemente, esse fio, essa ligação, somente poderá configurar-se quando tecido a partir das especificidades de cada comunidade escolar, com condições, arranjos e configurações familiares distintas.

Lembro que no começo da pandemia uma criança me explicou: “eu acho que dá, sim, para sair lá fora; é só a gente fazer uma rede e prender o coronavírus”. Achei muito interessante essa provocação. Ainda que não possamos sair às ruas da forma como a pequena interlocutora sugeria, sem dúvida é possível e necessário armarmos redes. Neste sentido, pensando em “como apresentar a pandemia para as crianças”, podemos considerar a importância de escutarmos as crianças e de deixá-las nos apresentar a pandemia também através do seu olhar. Somente construindo redes e nos fortalecendo nos coletivos conseguiremos encontrar palavras para atravessarmos este momento. As narrativas que pudermos armar hoje, coletivamente, nos darão a sustentação necessária para nos reencontrarmos. Sigamos apostando juntos nesse tempo que virá.

Veronica Ezequiel

Psicóloga, especialista em Problemas do Desenvolvimento na Infância e Adolescência (Centro Lydia Coriat). Atua como psicóloga escolar em educação infantil (Rede Calábria) e como psicóloga clínica (Travessia – Clínica de Atendimento Psicológico e C-CAP – Centro Clínico de Atendimento Psicológico).