Do que trata o amor dos pais? – Silvia Eugenia Molina

No decorrer do trabalho virtual com professores das escolas infantis, falei sobre esta questão que, na minha experiência clínica com a infância, tem surgido como acentuadamente relevante. Por isto, pensei em escrever algo sobre o que apresentei naquele dia, 20-07-2020, como tema conexo ao que foi anteriormente publicado neste site: “De que maneira os pais, professores e cuidadores podem apresentar a pandemia às crianças?”
Portanto, do que trata o amor dos pais?
O afeto da mãe e do pai terá efeito estruturante quando for transmitido em uma posição de postergação dos próprios interesses. Tal renúncia permite a eles exercerem os papéis que o filho precisa para se subjetivar. Da mesma forma, esta é uma posição que todos aqueles que trabalhamos com crianças também precisamos adotar. Assim, torna-se possível dar conta desta tarefa civilizatória complexa e complicada, pois não existe desenvolvimento normal, na medida em que herdamos, além das potencialidades subjetivas (sintomas de estrutura) os obstáculos (sintomas clínicos) que, de geração em geração, são armazenados nas famílias das quais procedemos. O desprendimento subjetivo parental é o transmissor da vivacidade da posição ativa, visto que a partir dessa posição de despojamento dos interesses narcísicos pessoais, os pais conferem ao filho um protagonismo antecipado, já nos momentos iniciais da vida, quando o bebê não tem ainda condições de nomear-se como sujeito. No entanto, apesar disto, lhe é sustentada e facilitada a possibilidade de começar a vivenciar de que se trata estar numa posição ativa nesta primeira circunstancia social que é o laço materno-filial-parental.
Portanto, através deste afeto significante, assim denominado por se referir a essa modalidade de cuidar com a disposição de dar ao bebê e à pequena criança o que eles precisam para continuar transitando pelo processo de inclusão social.
Entre o repertorio de transmissões, a função materna indica o pai, legitimado por ela para ser o agente da transformação da angústia perante os confrontos e as dificuldades pela alegria de dar conta dos desafios. Trata-se de outra modalidade de cuidado que precisa se articular àquele dispensado pela mãe (cuidado mais contínuo, apesar de precisar estar situado na dialética presença-ausência, através da qual toda proposta da mãe ao bebê é sucedida pela espera da resposta), que tende aportar bem-estar, diminuindo os obstáculos da vida do bebê. Já o pai ocupa-se de fornecer outra versão dos cuidados: permitir que o bebê e a pequena criança tenham que lidar com situações problemáticas para que consigam encontrar soluções, saídas. Desse modo, podem transformar as experiências de angústia na alegria de sentirem-se capazes, pela vivência de sentirem-se competentes desde que consigam ir dando conta desses pequenos confrontos, pré-requisito para que, cada vez mais, se disponham a encontrar soluções até para os imprevistos que parecem sem saída. Temos, aqui, dois estilos de cuidados que precisam ser articulados e que devem ser exercidos por aqueles que encarnam a função materna e a função paterna. Apesar da sua complexidade, estes conceitos necessitam ser entendidos por todos os que trabalhamos com a infância, pois têm tantas maneiras de ser exercidos quanto pais e mães existem, inclusive durante os diferentes momentos de ser filho e de mãe e pai.
Assim, através do pai, surgirá a indicação dos outros representantes do social que precisem intervir para complementar sua estruturação subjetiva. Em relação a isto, durante esta pandemia, tivemos a oportunidade de constatar, de uma outra maneira, a significativa importância que tem, na estruturação subjetiva, o protagonismo destes outros representantes do social. Os bebês (do segundo momento, os do Estádio do Espelho) e as pequenas crianças, depois de se beneficiarem da possibilidade de conviver com os pais como quase nunca tiveram a oportunidade de fazê-lo, começaram a apresentar sintomas decorrentes de viver com eles em excesso.
Podemos dizer, então, que os dons maternos são transmitidos em articulação à disponibilidade paterna para participar na sustentação do laço parental, sustentação subjetiva que precisa complementar-se com os outros representantes dos espaços sociais e institucionais, também indispensáveis ao percurso desta estruturação.
Esta é a complexidade psíquica que nutre o afeto para que ele tenha efeito de amparo estruturante, convocando o filho a se inserir na rede do desejo.
Silvia Eugenia Molina
Psicóloga-Psicanalista. Especialista em Psicologia Clínica UFRGS; Fundador e membro da equipe clínica do Centro Lydia Coriat de PoA; Docente do Centro de Estudos Paulo Cesar D’Avila Brandão do Centro Lydia Coriat de PoA. Coordenador do Grupo de Estudos O Infantil e o Desenho, no seu XXIII ano de existência.